Na clássica história de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), lida por muitas gerações de crianças nos quatro cantos do mundo desde que foi lançada em 1943, a baobá é uma erva daninha que precisa ser combatida pelo Pequeno Príncipe diariamente – e ele faz isso assim que termina de se lavar pela manhã. Ele diz que, com isso, está limpando carinhosamente o planeta cujo solo está “infestado” de sementes de baobá. Elas esburacam o chão e existe o risco de rachar tudo. O cuidado maior é para não se confundir e arrancar uma muda de rosa no lugar de uma de baobá.
A baobá é uma árvore milenar, sagrada e muito simbólica para a cultura africana, e seria natural que numa versão que colocasse um garoto negro no papel do principezinho ela fosse não uma erva daninha, mas uma importante personagem. E ela está lá, ilustrada por Juliana Barbosa Pereira, bem atrás do protagonista, já na capa de O Pequeno Príncipe Preto, livro que Rodrigo França lança pela Nova Fronteira.
Essa é uma história conhecida para as 60 mil pessoas que viram a peça, com texto de França e interpretação de Junior Dantas, nos mais diversos palcos do País, em especial em teatros e escolas do Rio de Janeiro, ao longo de dois anos.
Nela, acompanhamos a aventura de um menino que mora em um minúsculo planeta com uma árvore baobá. Ele diz que gosta muito de regar a baobá, que é sua única companheira. É assim que tudo começa, e ele logo se apresenta: “Eu sou o Príncipe deste planeta. A Baobá disse que sou o Pequeno Príncipe. Ela é a grande princesa”. Há também uma raposa, um rei e a viagem do menino, mas, apesar desses elementos em comum, França diz que não se trata exatamente de uma adaptação de O Pequeno Príncipe de Exupéry.
“Quisemos trabalhar com esse imaginário lúdico de realeza e ter um príncipe preto. E fazer uma associação com o segundo livro mais vendido no mundo é uma forma de provocar uma reflexão com relação a essa estrutura”, explica o autor que mergulhou neste universo a convite de Junior Dantas, que queria fazer uma peça infantil sobre representatividade. As crianças nunca estiveram na mira do autor, que é cientista político, professor, dramaturgo e ex-Big Brother (edição 2019), mas ele conta que durante o processo entendeu que estava errado. “Elas são o princípio de tudo: dá tempo de modificar a raiz, a essência, e transformar.”
Convite feito e aceito, França achou que era preciso ir além da representatividade: ele tinha de avançar, discutir e pôr em prática o protagonismo. A peça deve voltar aos palcos da cidade no segundo semestre.
DO PALCO PARA O PRELO
Ele conta que a ideia de publicar um livro baseado no texto que escreveu para o palco surgiu porque ele sempre soube que por mais sucesso que uma peça faça seu alcance é pequeno. “Viajamos muito pelo Brasil, mas não conseguimos furar uma bolha necessária. E o livro pode estar na biblioteca, ele é dado de presente, pode ser comprado pela internet. A ideia foi que os valores que têm dentro do espetáculo chegassem para outras crianças e adultos”, conta o autor.
Esses valores, passados a Rodrigo, hoje com 42 anos, por seus pais e, principalmente, por sua avó, são transmitidos aqui, pela baobá. “É como se ela fosse a avó do menino que vai passar os valores, a sabedoria, o sentido de autovalorização e de autocuidado e que vai mostrar que é importante ouvir e respeitar os mais velhos”, conta o autor que explica ainda que a baobá dá frutos, serve de reservatório de água quando chove porque seu tronco é oco e é onde os africanos enterram seus mortos. Nada como a erva daninha de Saint-Exupéry.
Na história, o pequeno príncipe tem o sonho de conhecer outros planetas, saber quem mora lá e o que fazem. Ele aproveita a chegada das ventanias e, ao visitar esses lugares, vai espalhando a semente da baobáe o ubuntu. Essa foi uma promessa dele para sua árvore companheira: espalhar sua semente e ensinar que juntos todos ganham.
“Não existe tecnologia mais potente do que estar junto, aquilombado, para usar um termo mais histórico. Essa é uma característica dos nossos povos originários, indígenas e africanos, que estamos perdendo. As novas formas de organização social nos levam a estar separados, cada um no seu celular, focado no seu projeto e na sua vida”, comenta França.
É sobre isso também que ele quer conversar com seus leitores. “Quando percebemos que a dor não está relacionada só a você, que ela é estrutural e compartilhada com outras pessoas, entendemos que não temos gerência sobre aquilo, que a culpa não é nossa e que não há motivo para chegar à tristeza extrema”, diz depois de comentar sobre o aumento dos casos de depressão e suicídio entre os jovens.
Ele completa: “Acredito que devemos estar juntos, que cada um deve procurar seu grupo e seu coletivo para poder realizar e transformar. É impossível estar nesse mundo, especialmente nesse momento, sem poder transformar algo, sem poder colaborar para uma mudança para melhor. E não dá para fazer sozinho”.
Com humor e sensibilidade, O Pequeno Príncipe Preto fala sobre ancestralidade, afeto e empatia, e também sobre valorizar quem somos e nossa história – valores que Rodrigo e Juliana aprenderam em casa e colaboraram para a autoestima deles.
Aos 22 anos, a estudante de design que já trabalhou na identidade visual da peça e que ilustra agora seu primeiro livro conta que seus pais sempre lhe deram livros e mostraram filmes com personagens que se pareciam com ela.
“É sobre isso que o livro e a peça falam: que nossa pele é bonita, que nosso cabelo é bonito. Eu tive o privilégio de ter pais assim, numa época em que o assunto não era forte, e isso com certeza mudou a visão do que eu sou e me fez ter a autoestima que tenho hoje. É importante ter essa representatividade, ver uma pessoa igual a você fazendo coisas que você gostaria de fazer, abrir esse caminho de possibilidades”, diz. Para ela, a história fala também sobre amizade, amor, aceitação, se achar bonito e aceitar a diferença dos outros. É também sobre abraçar todo mundo. “A importância de uma história como essa é enorme ainda mais para as crianças que estão lendo, independentemente de como elas são”, completa Juliana.
Seu desafio nesse projeto foi criar um rosto para o personagem. “Eu queria passar uma expressão leve, infantil, de uma criança que está explorando esse universo e viajando por esses planetas. E que fosse um rosto com o qual as crianças pudessem se identificar porque a representatividade é essencial. Se você não tem um livro com um personagem que se pareça com você, como vai poder achar que é capaz e pode fazer alguma coisa?”
Este é um livro para todos, diz Rodrigo França. “Ouvimos de pessoas não negras que elas não sabiam como tocar nesse tipo de assunto com os filhos e sentiam que as crianças estavam reproduzindo valores nos quais a família não acredita.” Para o autor, o que faz com que uma criança reproduza o racismo ou qualquer tipo de preconceito é não entender que existe uma diversidade e que essa diversidade é uma característica positiva e rica. E isso está no livro e na peça. “Quem ler ou assistir ao espetáculo vai entender que não existe uma única cor da pele”, diz Rodrigo, alvo de racismo quando participou do Big Brother Brasil e que tem outros três projetos teatrais em andamento: é codiretor de Yabá: Mulheres Negras, que estreia no Rio; é autor e diretor de Capiroto, previsto para estrear em São Paulo em abril, e em junho apresenta, no Rio, O Circo de Benjamin, para crianças, sobre o primeiro palhaço negro.
O PEQUENO PRÍNCIPE PRETO
Autor: Rodrigo França
Ilustradora: Juliana Barbosa Pereira
Editora: Nova Fronteira
(32 págs.; R$ 39,90)